quinta-feira, 31 de maio de 2012

A temida greve da alimentação pública

Leandro Narloch, Rodrigo Constantino e Anthony Ling



Depois de uma semana de greves de metrôs e ônibus pelo país, políticos e especialistas voltaram a repetir as opiniões de sempre.

Dizem que é preciso haver mais planejamento do poder público, que o governo precisa investir mais no transporte coletivo, que a mobilidade urbana deve ser prioridade etc.

Recomendações assim são como oferecer uísque a alcoólatras: o remédio que se receita é precisamente a causa do problema.

O que impede a melhoria do transporte não é a falta de cuidado do governo, e sim o monopólio público sobre o transporte coletivo. Para chegar a essa constatação, basta imaginar uma notícia comum nos últimos dias tratando de outro serviço essencial: a alimentação.


"A semana foi de muito transtorno para quem precisa se alimentar fora de casa. Greves de garçons e cozinheiros paralisaram os serviços de mais de 30 mil restaurantes, padarias e lanchonetes que formam o sistema de alimentação pública municipal. Os trabalhadores pedem aumento real e reajuste dos abonos salariais. Não houve acordo entre o governo e o sindicato até o fim da noite de ontem. 
Na capital, 6 milhões de pessoas utilizam diariamente o serviço de alimentação coletiva.

Todos os estabelecimentos que vendem comida pronta são operados sob concessão por apenas 16 consórcios e cooperativas. A prefeitura e o governo estadual supervisionam a distribuição dos prato feitos e comerciais, planejam o sistema e realizam os repasses para as concessionárias.

Sem ter a quem recorrer diante da paralisação dos serviços, usuários chegaram a depredar bares e restaurantes. Outros se arriscaram em lanchonetes clandestinas, aquelas que não foram escolhidas nas licitações do governo e por isso atuam à margem do sistema de abastecimento da cidade.

A prefeitura alerta que esses serviços, além de ilegais, trazem diversos riscos para os usuários.
O sistema oficial, porém, é mal avaliado pelos cidadãos. Pesquisa recente mostra que o número total de queixas à prefeitura contra as comedorias saltou de 119.755, em 2010, para 143.901, em 2011. 
A demora no atendimento ficou em primeiro lugar entre as dez principais reclamações. Outras queixas comuns são o desrespeito dos garçons, a pouca variação do cardápio e a falta de limpeza nas instalações.

O prefeito prometeu ontem mais investimentos na área. 'Até 2013, esperamos reduzir para 40 minutos o tempo de espera para o almoço', disse. Ele negou que o aumento dos salários dos garçons e cozinheiros resulte em aumento da tarifa do prato feito, hoje em R$ 30.

O Ministério Público investiga supostos repasses ilegais da prefeitura a concessionárias, que fizeram expressivas doações de campanha na última eleição. Os promotores acreditam que esses repasses seriam o principal motivo para a comida custar tão caro mesmo sendo subsidiada pelo governo. 
Analistas afirmam que seria melhor que o governo deixasse para a iniciativa privada toda a venda de comida pronta. A concorrência entre padarias, botecos e restaurantes, argumentam eles, levaria diversidade e qualidade ao setor, atrairia a classe média e ainda baixaria o custo do serviço popular, como acontece em centenas de outros ramos da economia.

Para os analistas, a livre iniciativa e a concorrência poderiam até fazer a cidade ser mundialmente conhecida por seus restaurantes.

O sindicato dos garçons, a prefeitura, a associação das concessionárias, o Ministério Público e o governo estadual reagiram veementemente a essa proposta, que qualificaram de 'irresponsável e neoliberal'. 

Para as entidades, a ausência do Estado na alimentação poderia resultar na falta de lanchonetes em áreas distantes, além do desabastecimento de comida na cidade. 'Se algum dia entregarmos o setor de restaurantes a empresários comprometidos apenas com o lucro, criaremos um completo caos', disse o prefeito."

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Comitês de depuração


Luiz Felipe Pondé

IMAGINE PARIS entre 1940 e 1944. Ocupação nazista. Agora se pergunte: onde estavam os artistas e intelectuais, franceses ou não, naquele momento? Estes que gostam de posar de arautos da ética, da transparência e do bem.

Claro, houve a "resistência francesa". Se contarmos o número de pessoas cujos pais e avós foram da Resistência Francesa, não teremos franceses suficientes para completar a cota dos resistentes de cada família.

Provavelmente, os resistentes de fato não enchiam dois ônibus. A Resistência Francesa é um dos maiores mitos modernos, assim como a dinamarquesa, a sueca, a holandesa e outras. A falsa coragem não é privilégio de nenhum povo. A maioria conviveu com o nazismo. E conviveria de novo. Raros são os que se revoltam contra situações assim, porque simplesmente temos medo e somos seletivos em nossas prioridades morais -quando existem.

Em situações assim, pensamos primeiro no café da manhã, no almoço e na janta. No emprego, no cotidiano, nas vantagens que podemos ter, dadas as condições em que vivemos. Danem-se as vítimas.
O século 20 criou uma das maiores mentiras da humanidade: a solidariedade abstrata. Aquela que se presta direto do Facebook ou do cardápio orgânico.

Não quero dizer que "tudo bem ser covarde", desculpando nossos atos pela banalização do medo. Basta um só corajoso para a covardia revelar sua face vergonhosa. O que me espanta é a mentira moral que se conta negando a epidemia de covardia em situações como essas. E gente "chique intelectualmente" adora esse tipo de farsa.

Depois de passar o dilúvio, aí aparecem milhares de "resistentes" corajosos para colher os louros que não merecem. Onde estavam Sartre, Beauvoir, Camus, Picasso, Dalí, Mauriac, Colette, Malraux, Gide e outros luminares naqueles anos?

Se você quer saber, leia o maravilhoso livro de Alan Riding, "Paris, A Festa Continuou - A Vida Cultural durante a Ocupação Nazista, 1940-4", publicado pela Cia. das Letras. Trata-se de um painel definitivo do cenário intelectual e artístico da época, revelando detalhes do convívio "pacífico" da casta erudita francesa (e de estrangeiros que lá viviam) com a ocupação alemã.

Não se tratam dos reconhecidos fascistas e antissemitas franceses como Louis-Ferdinand Céline, o grande escritor e médico. Mas sim daqueles que ensaiaram uma resistência cultural tímida (que os alemães nunca levaram de fato a sério) a troco de permanecer vivendo suas vidas comuns de intelectuais e artistas "comprometidos com um mundo melhor" (risadas?).

Até o mercado das artes plásticas viveu um crescimento tímido, mas real, na época.

Não eram "colabôs" de fato ("colaboracionistas", termo usado na França para quem apoiou a ocupação nazista), apenas faziam teatro, escreviam livros, pintavam quadros, faziam música, bebiam vinho. E quando os Aliados libertaram a França, logo se apressaram em "provar" sua condição de membros da resistência "cuspindo" na cara de gente que, muitas vezes, os ajudou porque eram de fato "colabôs" e tinham acesso a favores nazistas.

Os "comités d' épuration" (comitês de depuração) se multiplicaram no pós-guerra e visavam estabelecer a verdade de quem era ou não "colabô".

Os alemães sabiam que, mantendo os salões, os cabarés, as "brasseries", os cafés, as livrarias, as galerias de arte e os teatros em atividade, ajudariam a manter os franceses e estrangeiros cultos "ocupados". Todo mundo sabe que o risco para regimes como o nazista está em quem pega em armas, e não em quem fala delas.

Por que a vergonha da casta artística e intelectual manchou tanto o nome da França? Porque se esperava mais deles.

Segundo Riding, o trauma francês com relação à covardia daqueles que se diziam combatentes do pensamento e da arte pode ter sido causada pelo fato de que, desde a Revolução Francesa de 1789, a França "é uma população educada para reverenciar ideias... Alguns consideram este um dos legados da revolução de 1789, a noção inebriante de que uma ideia traduzida em ação pode produzir uma mudança súbita, radical e idealizada".

Ledo engano.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Verdade? Que verdade?


Marco Antonio Villa

Foi saudada como um momento histórico a designação dos membros da Comissão da Verdade. Como tudo se movimenta lentamente na presidência de Dilma Rousseff, o fato ocorreu seis meses após a aprovação da lei 12.528. Não há qualquer justificativa para tanta demora. Durante o trâmite da lei o governo poderia ter desenhando, ao menos, o perfil dos membros, o que facilitaria a escolha.
Houve, na verdade, um desencontro com a história. O momento para a criação da comissão deveria ter sido outro: em 1985, quando do restabelecimento da democracia. Naquela oportunidade não somente seria mais fácil a obtenção das informações, como muitos dos personagens envolvidos estavam vivos. Mas – por uma armadilha do destino – quem assumiu o governo foi José Sarney, sem autoridade moral para julgar o passado, pois tinha sido participante ativo e beneficiário das ações do regime militar.
O tempo foi passando, arquivos foram destruídos e importantes personagens do período morreram. E para contentar um setor do Partido dos Trabalhadores – aquele originário do que ficou conhecido como luta armada – a presidente resolveu retirar o tema do esquecimento. Buscou o caminho mais fácil – o de criar uma comissão – do que realizar o que significaria um enorme avanço democrático: a abertura de todos os arquivos oficiais que tratam daqueles anos.
É inexplicável o período de 42 anos para que a comissão investigue as violações dos direitos humanos. Retroagir a 1946 é um enorme equívoco, assim como deveria interromper as investigações em 1985, quando, apesar da vigência formal da legislação autoritária, na prática o país já vivia na democracia – basta recordar a legalização dos partidos comunistas. Se a extensão temporal é incompreensível, menos ainda é o prazo de trabalho: dois anos. Como os membros não têm dedicação exclusiva e, até agora, a estrutura disponibilizada para os trabalhos é ínfima, tudo indica que os resultados serão pífios. E, ainda no terreno das estranhezas e sem nenhum corporativismo, é, no mínimo, extravagante que tenha até uma psiquiatra na comissão e não haja lugar para um historiador.
A comissão foi criada para “efetivar o direito à memória e a verdade histórica”. O que é “verdade histórica”? Pior são os sete objetivos da comissão (conforme artigo 3º), ora indefinidos, ora extremamente amplos. Alguns exemplos: como a comissão agirá para que seja prestada assistência às vítimas das violações dos direitos humanos? E como fará para “recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional”? De que forma é possível “assegurar sua não repetição”?
O encaminhamento dado ao tema pelo governo foi desastroso. Reabriu a discussão sobre a lei de anistia, questão que já foi resolvida pelo STF em 2010. A anistia foi fundamental para o processo de transição para a democracia. Com a sua aprovação, em 1979, milhares de brasileiros retornaram ao país, muitos dos quais estavam exilados há 15 anos. Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra, Miguel Arraes, Leonel Brizola, entre os mais conhecidos, voltaram a ter ativa participação política. Foi muito difícil convencer os setores ultraconservadores do regime militar que não admitiam o retorno dos exilados, especialmente de Leonel Brizola, o adversário mais temido – o PT era considerado inofensivo e Lula tinha bom relacionamento com o general Golbery do Couto e Silva.
Não é tarefa fácil mexer nas feridas. Há o envolvimento pessoal, famílias que tiveram suas vidas destruídas, viúvas, como disse o deputado Alencar Furtado, em 1977, do “quem sabe ou do talvez”, torturas, desaparecimentos e mortes de dezenas de brasileiros. Mas – e não pode ser deixado de lado – ocorreram ações por parte dos grupos de luta armada que vitimaram dezenas de brasileiros. Evidentemente que são atos distintos. A repressão governamental ocorreu sob a proteção e a responsabilidade do Estado. Contudo, é possível enquadrar diversos atos daqueles grupos como violação dos direitos humanos e, portanto, incurso na lei 12.528.
O melhor caminho seria romper com a dicotomia – recolocada pela criação da comissão – repressão versus guerrilheiros ou ação das forças de segurança versus terroristas, dependendo do ponto de vista. É óbvio que a ditadura – e por ser justamente uma ditadura – se opunha à democracia; mas também é evidente que todos os grupos de luta armada almejavam a ditadura do proletariado (sem que isto justifique a bárbara repressão estatal). Nesta guerra, onde a política foi colocada de lado, o grande derrotado foi o povo brasileiro, que teve de suportar durante anos o regime ditatorial.
A presidente poderia ter agido como uma estadista, seguindo o exemplo do sul-africano Nelson Mandela, que criou a Comissão da Verdade e Reconciliação. Lá, o objetivo foi apresentar publicamente – várias sessões foram transmitidas pela televisão – os dois campos, os guerrilheiros e as forças do apartheid. Tudo sob a presidência do bispo Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz. E o país pôde virar democraticamente esta triste página da história. Mas no Brasil não temos um Mandela ou um Tutu.
Pelas primeiras declarações dos membros da comissão, continuaremos prisioneiros do extremismo político, congelados no tempo, como se a roda da história tivesse parado em 1970. Não avançaremos nenhum centímetro no processo de construção da democracia brasileira. E a comissão será um rotundo fracasso.

terça-feira, 22 de maio de 2012

A vaga na garagem e a sanha legiferante


A sanha legislativa dos políticos brasileiros se contrapõe à sua baixa produtividade; isto é, embora desejem regulamentar tudo, seja algo móvel, imóvel, animado ou inanimado, a baixa carga horária de trabalho, a má formação intelectual e as intermináveis denúncias de corrupção – além de outros motivos – os impedem de trabalhar. E isso, a meu ver, não é de todo ruim. Embora se possa dizer que, porque não legislam, esta função cai no colo do Judiciário – do STF, na verdade –, e que isso seria nocivo à democracia e ao modelo da separação de poderes, existe um lado bom sim.
            O aspecto benéfico disso tudo é o fato de não regularem toda nossa vida, apesar desse ser o objetivo de qualquer um que chegue à capital federal investido em um cargo público. Do burocrata da mais baixa patente até o político graúdo, todos querem dizer o que seus súditos devem fazer com suas próprias coisas, com seu corpo, sua mente, seus bens, seus futuros bens, etc.
            A mais nova lei, que na verdade é de autoria do senador Marcelo Crivella, salvo engano meu um pastor – não que isso seja problema, já que parece ser tão ruim quanto qualquer outro deputado ou senador –, dispõe sobre a alienação ou locação de vagas de garagem em condomínios a pessoas estranhas a ele. Naturalmente, trata-se de uma proibição dessa atividade. Ou seja, um sujeito cria uma lei federal, da longínqua Brasília, para decidir o que cada um, dono do seu apartamento, numa cidade distante, com costumes absolutamente particulares, deve fazer com a sua vaga de garagem. Ou o senador é um ser ungido (pior que deve acreditar ser mesmo), com uma mente brilhante e magnânima, sempre disposta a facilitar e orientar seu rebanho sobre o melhor caminho a tomar, ou estamos diante de mais um exemplo lamentável de intervencionismo estatal na vida das pessoas.
            Como se não bastasse a ridícula proibição, o texto da lei, que altera o artigo 1.331 do Código Civil, torna a lei desnecessária, já que, após impedir que o proprietário aliene sua vaga de garagem a pessoas estranhas ao condomínio, informa ao final a exceção à esta regra: se houver autorização expressa da convenção condominial em sentido contrário. Em outras palavras, se os condôminos quiserem, poderá haver a alienação/locação da vaga para alguém alheio ao condomínio. E por que não deixar os próprios condôminos decidirem isso desde sempre? Será que os moradores do local não estão mais aptos a decidir esse aspecto cotidiano de suas vidas? Qual é a razão de ser desta lei? Só o desejo incontrolável de mandar na vida dos outros explica.  

sexta-feira, 18 de maio de 2012

O vício pela virtude

Carlos Alberto Sardenberg

Você está no peso ideal, colesterol abaixo de 100, pressão 12 por 8, boa alimentação,exercícios em dia e – quer saber? – você está em desvantagem. Não tem como melhorar. Suponha que você fique doente. O que o médico poderia recomendar para aperfeiçoar sua qualidade de vida? Bem diferente se você estivesse gordinho e meio paradão. Haveria ampla possibilidade de ação e melhoria.
Foi com esse tipo de lógica que o ministro Guido Mantega andou demonstrando uma suposta superioridade brasileira no cenário de crise mundial. Lembrou, por exemplo, que em muitos países a taxa de juros está próxima de zero, de modo que seus bancos centrais, coitados, não dispõem de poderoso instrumento de estímulo à economia. Já o Banco Central (BC) brasileiro,que pilota a maior taxa de juros do mundo, teria ampla possibilidade de reduzi-la várias vezes.
Assim, um dos piores vícios brasileiros, o juro descabido, se transforma em virtude. Mas, se essa lógica faz sentido, também faria sentido derivar daí uma recomendação de política monetária: que os bancos centrais mantivessem juros elevados para poder reduzi- lo sem caso de necessidade. Eis sonos levaria a uma contradição em termos: na crise, os juros não poderiam ser reduzidos porque se perderia o instrumento.
Vai que o BC brasileiro coloca a taxa de juros a zero e a economia continua exigindo mais estímulo, o que fazer? Parece absurdo, é absurdo, mas é isso o que nos estão dizendo: teria sido enorme sabedoria manter os juros mais altos do mundo.
Pode?! Não é incrível que apareça esse tipo de questão em meio a um momento difícil e complexo da economia global?
É claro que os bancos centrais que já reduziram os juros não têm mais o que fazer nessa direção. Mas os juros no chão continuam fazendo o serviço de baratear consumo e investimentos.
Portanto, vamos reparar: em qualquer circunstância, os juros brasileiros constituem vício. E formam o sintoma mais visível de diversas doenças da economia local, incluindo dívida pública elevada e com rolagem curta, gasto público exagerado e baixo nível de investimento.
Aplicaram a mesma manobra mental aos compulsórios – dinheiro que os bancos devem deixar depositado no Banco Central -, também os maiores do mundo aqui, no Brasil. Com tanto dinheiro retido, quando surge algum problema de liquidez, como falta de dinheiro e crédito na praça, o nosso BC pode liberar recursos do compulsório.
Do mesmo modo que na lógica maluca dos juros altos, o “correto” seria deixar o compulsório elevado para poder reduzi-lo quando ocorresse algum problema. Outro vício que virou virtude.
Reparem: compulsório é dinheiro retirado do sistema financeiro, que tem reduzida sua capacidade de emprestar para empresas e pessoas. É vício, sintoma de uma economia doente que não pode conceder crédito abundante.
Olhando bem, juros altos e compulsórios elevados são duas faces do mesmo vício. Decorrem das necessidades de um governo gastador,que avança no mercado para se financiar, e do baixo nível de investimentos. Dito de outro modo: com juros baratos e mais dinheiro disponível, o crédito cresceria e ampliaria a capacidade de investimento e de consumo de empresas e pessoas. E isso traria mais inflação, porque a oferta de bens e serviços ficaria muito abaixo dessa demanda turbinada.
Sim, é verdade que,em muitos países, juros muito baixos, por muito tempo, e muito dinheiro disponível levaram a bolhas e excessos de gastos públicos e privados. O momento, portanto, é de maior prudência.
Não decorre daí que é melhor ter crédito caro e limitado. E, se for para escolher o problema, é melhora abundância do que a falta de crédito.
Vamos reparar, portanto: o mundo está num período de crescimento baixo, com inflação também baixa e juros no chão. Que, neste momento, o Brasil tenha crescimento muito baixo e, ainda assim, juros altos e inflação acima da meta é um baita sinal negativo.
Como isso pode ter acontecido? Quais são as causas dessa anomalia?
Em vez de responder a essas questões com uma política consistente, o governo resolve atropelar bancos, incluindo os públicos, para forçar a queda dos juros, na marra. Parece que os juros são altos por causa da ganância dos bancos e porque os governos anteriores, incluindo o de Lula, não tinham vontade de reduzi-los.
Reparem: até a presidente Dilma iniciara campanha, os bancos públicos cobravam juros “normais”, quer dizer, parecidos com aqueles praticados nas instituições privadas. De um dia para outro, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal descobrem que podiam cobrar bem menos.
Quer dizer que antes estavam inteiramente errados? Ora, sendo bancos públicos, era preciso que viessem a público para explicar por que não reduziram essas taxas antes e ficaram tanto tempo punindo o público com juros excessivos. Nem os bancos, muito menos o governo, deram as explicações.
Vai ver que a redução efetiva e duradoura dos juros depende de outros fatores além da determinação da presidente. E, se for isso, todo esse barulho pode levar a duas consequências. Ou essa derrubada estaria mais no barulho do que na realidade dos clientes (muitos já reclamando das condições difíceis para obter as novas taxas). Ou os bancos públicos vão mesmo derrubar suas taxas de modo amplo e geral, o que os levará, no mínimo, a uma perda de rentabilidade e, no limite, a prejuízos.
Não nos esqueçamos: Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, conduzidos politicamente, já quebraram mais de uma vez. Só o governo FHC gastou cerca de R$ 15 bilhões, dinheiro nosso, dos contribuintes, para salvar esses dois bancos.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Os alemães devem ser idiotas


Carlos Alberto Sardenberg

Você precisa reduzir o colesterol e entrar em forma. Um médico recomenda restrição alimentar - tipo peixe levemente grelhado com legumes no vapor, água com gás e o requinte máximo de uma rodela de limão - mais uma carga pesada de exercícios físicos. Diários. O outro diz que você pode chegar ao mesmo resultado comendo o que gosta, talvez reduzindo os doces, e jogando umas partidas de bocha.

Havendo alguma chance de que esta segunda opção funcione, você será um idiota se escolher a primeira. Ou seja, os alemães são uns idiotas. Essa é a conclusão inevitável que se tira do modo como muita gente apresenta as alternativas de política econômica em disputa na Europa.

Dizem: a chanceler Angela Merkel recomenda - mais do que isso, impõe o regime da austeridade, sacrifício e suor do rosto. François Hollande, o presidente eleito da França, admite que é preciso ter algum cuidado com a alimentação, as contas públicas, mas oferece o caminho do crescimento acelerado e, melhor, sem muito trabalho.

Por exemplo, diz que vai reduzir a idade mínima de aposentadoria de 62 para 60 anos. Na Alemanha, é de 63 anos, mas está subindo para 65 e pode chegar a 67, em alguns casos. Hollande também vai garantir a jornada semanal de 35 horas - uma bandeira de seu Partido Socialista. Na Alemanha, a jornada média chega às 41 horas, sendo a mais longa entre os europeus mais ricos. E os salários na França são mais elevados do que na Alemanha.

Como se dizia: é melhor ser rico com saúde do que pobre doente, não é mesmo? Melhor trabalhar menos, ganhar mais, e aposentar-se antes...

Tem uns probleminhas, porém. O desemprego na Alemanha está na faixa dos 5%, um dos níveis mais baixos do mundo. Na França, é o dobro. Na saída da crise, a Alemanha cresceu acima de 3,2% em 2010 e 2011. A França, metade disso.

Hollande alegou, durante a campanha, que a França cresceu pouco justamente por causa da receita de austeridade - redução do gasto público, especialmente - imposta pelo presidente Sarkozy, uma espécie de sub-Merkel.

Não faz sentido. Sarkozy não aplicou a austeridade, de cuja ideia se afastou justamente por medo de perder a eleição, nem fez qualquer reforma estrutural importante. Conseguiu, é verdade, elevar a idade de aposentadoria para 62 anos, mas essa mudança só começaria a valer mais à frente - de modo que ainda não trouxera qualquer efeito antes de ser declarada morta. Também prometera colocar a França de volta ao trabalho, eliminando a jornada de 35 horas, mas conseguiu apenas algumas exceções, caras.

Já a Alemanha fez boa parte dessas reformas estruturais no início dos anos 2000 - e isso, ironia, com um governo de esquerda, do social-democrata Gerhard Schröder. A partir daí, assentou as bases do crescimento da década seguinte e, especialmente, a capacidade de escapar da crise mais rapidamente.

De onde tiraram que a receita alemã não funciona? É um equívoco enorme apresentar a receita Merkel como a da recessão, em oposição à agenda de crescimento de Hollande.

Merkel está dizendo duas coisas: primeiro, que não é possível crescer de maneira sustentada aumentando déficits e dívidas públicas já elevadas; segundo, também não se cresce sem reformas estruturais que devolvam competitividade às economias nacionais.

Ou seja, a França cresce pouco e tem desemprego alto não por causa da austeridade - o governo gasta lá o equivalente a 56% do PIB, recorde europeu - mas pela falta de competitividade e excesso de despesa e impostos.

Como resolver a falta de crescimento? Ora, é simples, diz Hollande: crescendo mais...

E sabe o que deve acontecer? Nada, além da retórica. O governo Hollande acabará sendo muito parecido com o de Sarkozy - nada de mudanças sensíveis. Merkel vai topar algum plano de novos investimentos europeus, com um dinheirinho de algum fundo de desenvolvimento, para o pessoal dizer que se aplicou a agenda do crescimento.

Como as contas públicas francesas não estão em situação dramática, há um estímulo para continuar levando assim: crescimento baixo, desemprego alto - mas uma boa vida para quem está empregado ou aposentado. As futuras gerações que se danem.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Juro no pasto: o assustador ataque de Dilma aos bancos

Maílson da Nobrega

O Brasil tem uma das maiores taxas de juros do mundo. Certo. Também tem um dos maiores níveis de emprego informal do planeta. Correto. As duas expecionalidades resultam de problemas estruturais acumulados ao longo de muitos anos, de díficil solução a curto e médio prazos e dependentes de complexas reformas institucionais. Os bancos não são, ao contrário do que se pensa, os grandes culpados pelas altas taxas de juros, assim como os empresários não são a causa da informalidade no mercado de trabalho.
Mesmo assim, a presidente Dilma fez ontem à noite um duro e assustador ataque contra os bancos, em cadeia nacional. Para ela, é “inadmissível que o Brasil, que tem um dos sistemas financeiros mais sólidos e lucrativos do mundo, continue com os juros mais altos do mundo”. Essa, convenhamos, é a percepção da maioria. Há, todavia, muitos estudos que explicam as razões das altas taxas de juros no país, inclusive no governo (Dilma e seus assessores podem ter acesso fácil a esses estudos no site do Banco Central). As taxas de juros altas refletem nossas próprias excepcionalidades em fatores que influenciam o tamanho do spread bancário. Nenhum outro país tributa tanto as transações financeiras ou tem tanto recolhimento compulsório de bancos ao Banco Central. Há outros fatores, como já comentei anteriormente neste blog.
A cruzada contra os bancos tem tudo para aumentar a popularidade da presidente. Com o intuito de reforçar os ganhos, ela incitou a população a forçar a queda da taxa de juros. Bancos não são populares em canto nenhum, mas no Brasil eles chegam a ser odiados. A desinformação, o preconceito e a ideologia formam um caldo complicado. Muita gente deve estar aplaudindo o discurso e dizendo impropérios contra quem criticar Dilma (como faço agora). A exemplo de outras vezes, deverei ser condenado e espezinhado pelo que escrevo, assim que este texto circular no Facebook.
Investir contra espantalhos e mirar efeitos com objetivos políticos tem sido uma característica de governos populistas. Atacar sintomas que a população confunde com causas gera ganhos de popularidade ou reverte sua perda. A perda ainda não é o que move Dilma a atacar os bancos, mas foi o caso dos generais argentinos que invadiram as Malvinas e da recente desapropriação, pela presidente Cristina Kirchner, das ações da Repsol na empresa petrolífera argentina YPF. Tal qual aconteceu em ações populistas semelhantes, particularmente no período de Juan Perón, o povo argentino apoiou: 62% se disseram a favor da desapropriação. O preço, como no passado, será altíssimo. Como diz a pida, “as consequências vêm depois”. A cruzada contra os bancos inclui determinação para que os bancos públicos reduzam as suas taxas de juros. A consequencia poderá ser enormes prejuízos para essas instituições, que serão pagos pelos contribuintes.
Nos tempos do Plano Cruzado, começou a faltar carne nos supermercados e açougues. Era um sintoma de uma causa – o congelamento dos preços – difícil de ser identificada pela população. A carne faltava porque o preço do boi gordo, tabelado, era inferior aos custos de produção. Vender a tal preço signficaria a falência. Como ocorreu em outros períodos da história mundial, os pecuaristas procuraram preservar o patrimônio duramente construído. Era melhor guardar o boi, arcando com o respectivo custo, do que levá-lo com prejuízo ao matadouro.
Como se recorda, o governo empreendeu, com apoio do ministro da Fazenda Dilson Funaro, uma ridícula ação de caça ao boi no pasto, empregando helicópteros e policiais federais. Deu no que deu. O errado era prolongar um congelamento insustentável, não a reação dos pecuaristas. Eles não eram especuladores, como se falava. Apenas buscavam se salvar da insanidade destruidora do governo. Do jeito que a coisa vai, Dilma terminará caçando juro no pasto. Isso porque, ao contrário do que ela e seus assessores pensam, os juros no Brasil não vão convergir tão cedo para níveis internacionais. A informalidade do mercado de trabalho tampouco será em breve a dos países desenvolvidos. Cabe lembrar que Funaro tabelou, sem sucesso, o spread bancário. Dilma fará o mesmo? Não me surpreenderia.
O Brasil vem perdendo o encanto em certos círculos no exterior, isto é, os que acompanham de perto os rumos da gestão governamental, particularmente da política econômica. A percepção de perda de dinamismo da economia brasileira é crescente. E das intervenções mal feitas na economia também. Isso leva tempo para se disseminar. Em algum momento, chegará às áreas de planejamento estratégico das empresas que investem ou pensam em investir no Brasil. O discurso de Dilma contra os bancos dará uma contribuição adicional para a mudança de percepção de aumento dos riscos.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Notícias do hospício


João Pereira Coutinho
1. NOVA York deu-nos a música de Stephen Sondheim, os combates de Rocky Marciano e os filmes de Woody Allen. Mas também nos deu Michael Bloomberg, um caso de fanatismo antitabagista que diverte e comove ao mesmo tempo.
Agora, depois de todas as restrições antitabagistas conhecidas (em restaurantes, escritórios, parques, praias etc.), parece que o "mayor" não exclui a proibição de fumo nas calçadas da cidade -e até, quem sabe, no interior dos lares.
Ponto prévio: não sei como será possível fiscalizar o cumprimento da lei na casa de cada cidadão. Detectores de fumaça obrigatórios? Câmeras idem? Gratificação para delatores da família, como na saudosa União Soviética? Mistério.
Uma coisa, no entanto, parece certa: o que começou como preocupação razoável sobre liberdade e saúde alheias converteu-se no pretexto ideal para que o poder político faça o que melhor sabe: eleger um inimigo da sociedade, despersonalizá-lo até a humilhação total e arregimentar legiões de talibãs contra ele, que desatam a tossir ante a ameaça do cigarro -quando, anteriormente, nem pensavam nisso.
Chegará o dia em que o fumante será o perfeito pária social -sem espaço para existir na civilização e sem uma toca onde possa refugiar-se da intolerância viscosa das massas. Já estivemos mais longe.
2. No mundo do desporto acontece de tudo: doping, rivalidades mortais, sacrifícios desumanos em nome da excelência. Mas que dizer de quem finge deficiências para concorrer nos jogos paraolímpicos?
A reportaggem é da revista alemã "Der Spiegel", e minha incredulidade é total: cresce o número de deficientes falsos que inventam cegueira, paralisia, até amputação -tudo em nome do desporto, da fama e, claro, do vil metal.
Exemplos? São incontáveis.
Monique van der Vost era uma celebridade na Holanda, uma das melhores ciclistas paraolímpicas do país. Só havia um pormenor: as pernas da sra. Monique funcionavam à perfeição. Os próprios vizinhos, temendo estar na presença de um gêmea, já a tinham visto a dançar pela casa. Não pretendo levantar falsos testemunhos, mas suspeito de que a dança era só forma de relaxamento antes das provas oficiais.
Monique não é caso único. Yvonne Hopft, cinco vezes medalha de ouro em provas paraolímpicas de natação para cegos, afinal não o era: hoje, afastada das competições, resolveu mudar de vida e até já tirou a permissão para dirigir.
Mas o melhor exemplo de fraude vem da equipe espanhola de basquete, que se apresentou em 2000, nos Jogos Paraolímpicos de Sidney, para disputar a medalha de ouro de deficientes mentais profundos.
A equipe conquistou a medalha de ouro, sem dúvida, mas parece que dez atletas tinham um Q.I. perfeitamente normal. A revista, infelizmente, não esclarece se o Q.I. era normal para qualquer ser humano ou apenas para um espanhol.
Seja como for, o Comitê Paraolímpico Internacional promete vigilância e penas duras aos farsantes. Aplaudo, comovido. Mas o que será pena dura para quem finge ser deficiente e ganha a vida com isso?
Nos meus momentos de delírio, penso que a única forma de punir seriamente os farsantes era infligir-lhes, temporariamente que fosse, a exata deficiência de que eles fingem ser portadores para enganar meio mundo. Tenho certeza de que o desporto paraolímpico ficaria mais respirável da noite para o dia.
3. E, por falar em deficiências, leio na imprensa brasileira que os gagos de Manaus poderão ter desconto de 50% nas contas do celular.
A intenção não é nova: Mato Grosso do Sul já tem legislação a respeito, informa o jornal "O Globo", o que significa que o cliente gago só tem que pedir uma avaliação médica a um fonoaudiólogo e entregar o documento da sua deficiência no operador telefônico respectivo.
Depois, não importa se ele demora mais tempo para falar o que tem a falar: a mão paternalista do governo ampara a sua gagueira com mais uma política de "discriminação positiva".
Um absurdo? Honestamente, creio que a notícia se comenta a ela própria. Uma consequência da medida, porém, parece-me inevitável a curto prazo: vai aumentar o número de gagos em Manaus.