quinta-feira, 9 de agosto de 2012

O mensalão e a "pressão da mídia"


Eugenio Bucci
Com o início do julgamento do processo do mensalão, no supremo tribunal federal (STF), muita gente voltou a falar em “pressão da mídia”. Muita gente mesmo. Políticos, magistrados, jornalistas, advogados e cidadãos a granel apontam o dedo contra a tal “pressão da mídia”, quase sempre em tom de reprovação. A”mídia”, afirmam eles, estaria prejulgando os acusados e afrontando os ministros do STF com uma cobrança indevida e monstruosa. Já houve até quem comparasse essa “pressão” com uma “faca no pescoço”, como se os jornais, as revistas e as emissoras de rádio e televisão assumissem a forma de uma guilhotina colossal ameaçando nucas desprotegidas.
Por favor. Se pode haver exageros e ataques pessoais inaceitáveis em algumas reportagens, há muito mais despropósito nesse discurso sobre a “pressão da mídia”. Pense bem, você, leitor: o que eles querem dizer com isso? Estará em curso uma campanha dos meios de comunicação para condenar à execração pública todos os réus, sejam eles culpados ou inocentes?
Para responder a essas perguntas, comecemos com um esclarecimento de ordem semântica: “mídia” não é sinônimo de imprensa. O embaralhamento entre as noções de “mídia” e imprensa é traiçoeiro, perigoso. Estabelece um sinal de igual entre jornalismo, programas de auditório, novelas e publicidade, além de sugerir que tudo o que o jornalismo faz é propaganda ideológica. Nada mais falso.
“Mídia” é uma palavra esquisita. Veio para nosso idioma pela transcrição da pronúncia inglesa do termo latino media, que é o plural de medium (meio). Media significa meios ou, em nosso caso, meios de comunicação: rádio, televisão, internet, veículos impressos e muito mais. Dentro de cada um desses meios, os gêneros de programas são incontáveis. Há os humorísticos, as novelas, as missas, os cultos animados por telepregadores, aos borbotões bíblicos, além de transmissão de jogos de futebol. Há de tudo e mais um pouco. Nada disso, porém, é jornalismo. Aliás, quando o jornalismo se deixa confundir com o entretenimento ou com a publicidade, ele se barateia, perde substância e deixa de informar com precisão.Agora pense bem, você, leitor. Você é criança? Você não tem discernimento próprio? Você é um cordeirinho nas mãos da máquina da “mídia”? E mais: será que você não tem direito de conhecer a fundo o processo do mensalão, que, por todos os motivos, já é um processo judicial histórico? Eu e você sabemos que muitas vezes jornalistas se prestam a papéis indignos, mas não podemos qualificar de indigna a cobertura geral do mensalão. Ao contrário: apesar de seus excessos, essa cobertura contribui para que conheçamos melhor os fatos e os argumentos de cada um. Todos sabemos também que à imprensa não cabe julgar. O que ela deve fazer é contar o que se passa. Se ela não cumprir esse dever, de forma crítica, independente e plural, a sociedade não terá como acompanhar a evolução do processo e não terá como fiscalizar e avaliar a decisão de cada um dos magistrados.Ora, quem se ocupa da cobertura do julgamento do mensalão não é a “mídia”, mas os jornalistas, que trabalham para os mais diversos veículos, com as mais diversas orientações editoriais. Quem vê nessa cobertura uma campanha da “mídia” acusa as empresas de “mídia” de articular uma conspiração “midiática”, dentro da qual os repórteres não passariam de serviçais dos interesses dos patrões, que são contra o governo. Logo, imprensa é igual a propaganda e, em vez de informar, promove uma lavagem cerebral na nação, ela também inocente e desprotegida, como uma criança, como o pescoço em flor dos ministros do supremo.
Não, não há “pressão da mídia”. Existe, sim, a exaltação de ânimos diferentes na opinião pública, e essa exaltação se reflete na imprensa. Existe a mobilização de setores da sociedade civil, para um lado e para outro, é bom lembrar, ora a favor dos réus, ora contra eles, em manifestações legítimas. Quanto à imprensa, ela vem informando e debatendo, sob enfoques diferentes, dependendo de cada órgão jornalístico, numa diversidade que está aumentando no Brasil.
Quanto mais informação houver, mais chance teremos de que esse julgamento seja justo. A imprensa erra, é verdade, mas os erros que ela comete vão sendo contestados por outras vozes, num ambiente plural, como deve ser, em que a opinião pública polemiza livremente. A liberdade de imprensa vai equilibrando a liberdade de imprensa. Naturalmente. Os jornalistas, bem ou mal, estão cumprindo seu dever. Que os ministros do Supremo façam o mesmo – e isso aqui não é pressão contra ninguém.

domingo, 5 de agosto de 2012

Os amigos e os inimigos do Rei


No curto prazo, deve ser bom ter a “amizade” do rei, do chefe, do patrão ou do mais forte, ainda que injustiças sejam cometidas. Todavia, a história nos mostra que, no longo prazo, o que era bom se torna ruim, uma vez que a cumplicidade de outrora cobra seu preço. No caso brasileiro, o rei é, desde sempre, o governo, independente do partido político que esteja no poder. 
         A todo tempo, lemos notícias dando conta de pressões e chantagens políticas e financeiras que burocratas do governo – geralmente o ministra da fazenda -, fazem a grupos de empresários para que façam ou deixem de praticar algo que desagrade ou traga algum ônus político ao governante de plantão. Se se tratar de ano eleitoral, a chantagem – para não dizer extorsão – é explícita, a depender das necessidades que o cálculo político impõe.
         E, não por acaso, por estarmos vivendo um período eleitoral, as práticas citadas acima avultam no cenário político. A última chantagem foi feita pelo atual ministro da fazenda, Guido Mantega, aquele que se denominou de “levantador de PIB”, em entrevista recente. Sem se dirigir especificamente a qualquer uma das montadoras de veículos, a referida “autoridade” disse, por meio de sua assessoria, que não iria “tolerar” o descumprimento dos acordos de não demissão nos setores beneficiados por redução do IPI, entre eles o automotivo e o de linha branca (máquinas de lavar, geladeiras e fogões).
         Além das eleições, a fala do ministro reflete o receio das consequências da crise econômica mundial em terras tupiniquins – ainda que se fale em “marolinhas”. Vale dizer que, apesar de a chantagem feita, por si só, ser algo deletério, a estratégia adotada, de aumento do consumo mediante a redução das taxas de juros e de impostos, segundo alguns dos mais importantes economistas, está equivocada, já que a renda dos trabalhadores brasileiros se encontra bastante comprometida, situação que acarreta num maior endividamento da população, crescendo a taxa de inadimplência que, por sua vez, faz com que os bancos cobrem mais pelo empréstimo de capital, o que significa o retorno de juros mais altos.
         Se, de um lado, temos um governo que sempre buscou intervir na economia brasileira – e os últimos anos têm inúmeros exemplos -, do outro, o empresariado, de forma geral, mostra-se suscetível a acordos, ainda que isso custe a sua liberdade no longo prazo, como se vê agora, já que a decisão de se demitir alguém, deveria ser, exclusivamente, da empresa, sem que o governo opinasse ou pressionasse. Entretanto, como este, via de regra, empresta dinheiro público (BNDES), para a expansão e a produção de certos setores, estes, outrora aliados, veem-se relativamente aprisionados aos (des)propósitos governamentais. O problema está justamente nessa união espúria: o mercado, para que funcione corretamente ou da melhor forma possível, isto é, de forma justa e competitiva, de sorte a premiar os mais eficientes, para que venha a fornecer produtos melhores e mais baratos aos consumidores, não pode sofrer interferências de entes alheios ao cálculo econômico.    
         Está cabalmente demonstrado que um governo cada vez mais ativo na economia produtiva só é capaz de trazer problemas a longo prazo, conquanto privilegie alguns setores com impostos menores. Por ser governo e se manter pela arrecadação de tributos, se ele diminui de um lado, compensa com o aumento em outros setores, o que causa desequilíbrios. Pelo lado dos produtores, estes deveriam observar que quando fazem alianças e acordos com o governo – ainda que premidos pelos impostos -, perdem a liberdade para estabelecer as condições em que criam mercadorias, aspecto essencial para que se possa produzir da forma mais eficiente possível. Por último – e sempre por último -, os consumidores. Ora, se as empresas que fazem os acordos são os amigos do Rei, os consumidores são seus inimigos.

sábado, 28 de julho de 2012

O papel do jornal


Merval Pereira

A imprensa enfrenta no mundo permanente batalha de credibilidade, que volta e meia é perdida. Embora aqui no Brasil ainda apareça entre as instituições mais respeitadas pela opinião pública, há um desconforto na relação da imprensa com a sociedade. Se de um lado ela ainda depende da imprensa para ter seus direitos respeitados e para que denúncias sejam investigadas pelos governos, de outro há questionamentos persistentes quanto à irresponsabilidade do noticiário, sobre as acusações veiculadas — o que muitos classificam de denuncismo — ou quanto ao superficialismo do noticiário.
A imprensa aqui, mais que em outras partes, se transforma em poder por uma disfunção dos demais poderes. Ao produzir um primeiro nível de conhecimento dos fatos — o que muitos definem como um rascunho da História —, exerce o papel socialmente relevante de ser um canal de comunicação que liga Estado e nação, mas também os muitos setores da nação entre si. É sua atribuição fazer com que o Estado conheça os desejos e as intenções da nação, e com que esta saiba os projetos e desígnios do Estado.
No sistema democrático, a representação é fundamental, e a legitimidade da representação depende muito da informação, que aproxima representados e representantes. Nunca é demais relembrar o grande jornalista
americano Jack Anderson, considerado o pai do jornalismo investigativo, segundo quem a necessidade de a imprensa ocupar um lugar antagônico ao governo foi percebida com clareza pelos fundadores dos Estados Unidos, e por isso tornaram a liberdade de imprensa a primeira garantia da Carta de Direitos.
“Sem liberdade de imprensa, sabiam, as outras liberdades desmoronariam. Porque o governo, devido à sua própria natureza, tende à opressão. E o governo, sem um cão de guarda, logo passa a oprimir o povo a que deve servir”.
O presidente americano Thomas Jefferson entendeu que a imprensa, tal como o cão de guarda, deve ter liberdade para criticar e condenar, desmascarar e antagonizar.
Não obstante todos os novos recursos tecnológicos e as mudanças na sociedade que colocam o cidadão como protagonista, é o jornalismo, seja em que plataforma se apresente, que continua sendo o espaço público para a formação de um consenso em torno do projeto democrático. E os jornais ainda são a fortaleza maior do jornalismo de qualidade, tão importante para a democracia. A tese de que as novas tecnologias, como a internet, os blogs, o Twitter e as redes sociais de comunicação, como o Facebook, seriam elementos de neutralização da grande imprensa é contestada por pesquisas.
Uma, recente, da Associação de Jornais dos EUA (NAA na sigla em inglês) mostrou que os jornais tradicionais são marcas confiáveis para as quais o leitor corre quando algo importante acontece. A pesquisa mostra que ¾ de todos os usuários da internet têm os jornais como principal fonte de notícias, e os leem em várias plataformas.
Não é à toa que os sites e blogs mais acessados tanto nos EUA quanto no Brasil são aqueles que pertencem a companhias jornalísticas tradicionais, já testadas na árdua tarefa de selecionar e hierarquizar a informação. O jornalismo profissional tem uma estrutura, uma forma profissional de colher e checar informações que a vasta maioria dos blogueiros não tem. Não há dúvida de que, com o surgimento das novas tecnologias, os jornais perderam a hegemonia da informação, mas continuam sendo fatores fundamentais para cidadania.
São novos desafios, como o de explorar uma intensa variedade de meios de levar informação ao leitor sem ao mesmo tempo sufocá-lo com informação demais, produzindo a desinformação, que surge da profusão da informação, de seu encantamento, de sua repetição em círculos, na definição do filósofo francês Jean Baudrillard.
O filósofo alemão Jürgen Habermas define como a dupla função do que chama de “a imprensa de qualidade” atender à demanda por informação e formação. No texto “O valor da notícia”, ressalta que estudo sobre fluxos de comunicação indica que, ao menos no âmbito da comunicação política, a imprensa de qualidade desempenha papel de “liderança”: o noticiário político de rádio e TV depende dos temas e das contribuições provenientes do que chama de jornalismo “argumentativo”.
Sem o impulso de uma imprensa voltada à formação de opinião, capaz de fornecer informação confiável e comentário preciso, a esfera pública não tem como produzir essa energia, diz Habermas.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Contra o consumidor


Carlos Alberto Sardenberg

Quase todo mundo tem uma bronca com companhia telefônica. Celular que não pega, conta alta e ininteligível, instalação demorada e errada de internet - a lista é infinita.
É o fracasso da privatização, anima-se muita gente por aí. Desse ponto de vista, seria natural que brotasse um movimento pela reestatização das teles, mas não é o que se vê. A atitude dominante é reclamar, infernizar a vida das empresas com burocracias e impor prejuízos a elas.
Acham com isso que estão punindo as empresas, mas acertam no consumidor.
Considerem o caso recente de Porto Alegre, onde o Procon suspendeu a venda de novas linhas de celulares, por falhas no serviço atual. Os celulares não funcionam em certas áreas. Enquanto isso não for resolvido, as teles amargam a perda de vendas. Quem precisa de um celular, fica na fila.
Ora, celulares dependem de antenas e, pois, de torres. Quanto mais, melhor o sinal. Logo, parece lógico, as teles não podem mesmo vender linhas se não têm as torres.
Mas, no outro lado da história, os executivos das teles notam que as sete licenças necessárias para levantar uma torre em Porto Alegre não são concedidas em menos de seis meses, isso se a burocracia funcionar perfeitamente. Ou seja, leva muito mais. Além disso, mesmo quando saem as licenças, fica proibido colocar torres e antenas em tal número de locais que não há como evitar as "zonas de sombra".
Acrescente-se ao quadro que as empresas, ao vencerem licitações e receberem outorgas de frequência, são obrigadas a cumprir prazo para oferecer as linhas.
Resumo da ópera: o poder público concede, depois impõe regras que limitam a instalação de antenas e pune as teles por não entregar o serviço adequado.
Além das normas nacionais, há mais de 250 legislações estaduais e municipais, criando uma teia de entraves.
Tanto é problema que o Comitê Organizador da Copa fixou procedimento especial para as 12 cidades-sede. As licenças para instalação de torres têm de sair em no máximo 60 dias. Isso porque as teles estão obrigadas a instalar as redes de quarta geração (4G) até abril de 2013. E essa frequência exige um número maior de antenas. Porto Alegre é sede. Seu prefeito, José Fortunati, assinou o protocolo, mas a legislação restritiva continua em vigor. Resultado, estão todos lá tentando desfazer o embrulho.
No país, e mundo afora, as restrições baseiam-se em dois pontos. Um é urbanístico: as torres, obviamente, afetam o visual. Alguns dirão: estragam o cenário. Outros entenderão que armações com arquitetura avançada podem ser um ganho para a paisagem urbana. O outro ponto é ambiental e de saúde: uma preocupação com as consequências da emissão de raios. O que restringe, por exemplo, a colocação de antenas em áreas populosas, ali onde são mais necessárias.
Mas a Organização Mundial de Saúde já disse não haver evidências de que as antenas de celulares e os próprios causem danos às pessoas. Quanto à paisagem urbana, é decisão das populações.
Nada, portanto, que não se possa resolver com leis e regras simples e claras. Por que temos o contrário?
Pelo viés anticapitalista. Vamos reparar: a privatização das telecomunicações é um êxito espetacular. Em poucos anos, saímos da idade da pedra para o quinto mercado mundial de telefonia, com mais de 250 milhões de linhas.
Parte dos problemas vem dessa rapidez. Em um mercado muito competitivo e sob pressão para cumprir prazos da concessão, as teles mandaram ver. Parece claro que, não raro, faltaram equipamentos e mão de obra.
Mas está aí instalado e funcionando, de novo, o quinto sistema mundial de telefonia e internet, em constante processo de modernização. Por isso mesmo, nem os mais anticapitalistas pedem a reestatização. Mas sustentam o viés contra a empresa privada, especialmente a grande. É vista como predadora, ávida de lucros, para o que não hesita em esmagar os consumidores.
Logo, tem de ser regulada, controlada e taxada com impostos pesados, para que seus lucros sejam divididos com a sociedade, como dizem.
Tudo que conseguem é mandar a conta para o consumidor, de duas maneiras. Ou há barreiras à ampliação dos serviços, gerando ineficiência econômica, um custo para todos, ou o preço fica mais caro. Impostos, taxas e contribuições já formam a maior parte da conta.
Esse viés está espalhado dentro e fora do governo. Vai muito além das teles. Reparem a demora do governo em avançar nas concessões, mesmo depois de colocá-las como meta, e observem os termos e exigências dos editais. É como se dissessem aos concessionários: OK, vamos privatizar, não tem outro jeito, mas vocês vão ver só...

terça-feira, 17 de julho de 2012

Transtornos e desordens


João Ubaldo Ribeiro

De uns tempos para cá, é cada vez mais forte a tendência a não se ver o indivíduo como responsável pelos próprios atos. No terreno da ciência social esquerdoide, o sujeito é assaltante porque lhe faltaram oportunidades, não teve educação, vive numa sociedade consumista, foi vítima de bullying e mais quantos indicadores se concebam, em pesquisas cujos resultados são definidos pela própria formulação e, muitas vezes, não passam de manipulações pseudoestatísticas, destituídas de base sólida. Enxergam-se relações de causa e efeito inexistentes, que resistem até mesmo à óbvia verdade de que a ampla maioria dos que enfrentaram e enfrentam essas situações não é de delinquentes.
No terreno da psicanálise de boteco, o sujeito surra mulher e filhos porque foi também surrado, principalmente pela mãe. Ou - pois a psicanálise de boteco tem o condão de adaptar suas explicações e a causa que, num exemplo, surte determinado efeito em outro surte efeito contrário - porque não foi surrado e nem sequer advertido e, assim negligenciado pela mãe, nutre amor e ódio pela figura materna, na qual desconta seus recalques baixando a porrada na santa mãe de seus filhos, os quais também apanham porque dividem as atenções da dita figura materna. Ou qualquer outra especulação asnática, das muitas que volta e meia ainda ouvimos.
Agora, por meio da entusiástica colaboração de cientistas, psiquiatras e, principalmente, fabricantes de drogas psicoativas, vamos ingressar definitivamente na era em que qualquer comportamento ou qualquer emoção serão vistos como uma doença mental, no sentido mais lato do termo. Aliás, pouco se tem usado a expressão "doença mental". O chique agora, que repetimos como papagaios bem ensinados, é "transtorno", "desordem" ou "distúrbio". Sabemos que certamente a maioria dos psiquiatros e das psiquiatras, bem como a maioria dos cientistos e cientistas, embora talvez não a maioria dos fabricantes e fabricantas de drogas, não é constituída de enganadores venais e inescrupulosos, que tomam dinheiro dos fabricantes para promover a vendagem bilionária de remédios. Mas muitos e muitas são (está certo, vou parar com este negócio de flexionar os gêneros de tudo, sei que é chato; mas é só porque quero mostrar como certas coisas enfeiam e aleijam nossa já tão perseguida língua portuguesa) e a bandidagem deles combinada vai de vento em popa.
O número de transtornos e desordens aumenta exponencialmente e já se observou que, anunciado um novo mal, de que antes não havia relato, logo surgem novos "pacientes", gente que agora padece de síndromes também antes nunca descritas. E os males do espírito, digamos, muitas vezes não geram sintomas físicos, ou, se geram, são de difícil definição etiológica, de forma que o diagnóstico vira conceitual e subjetivo: eu acho que você está deprimido porque acho que seu quadro configura o que eu acho que é depressão.
Não há mais preguiça, há transtornos ou desordens de atenção, de motivação, de interação social, de tudo o que se possa imaginar. Não há mais agressividade, rudeza no trato, timidez, temperamento calado, nada disso, só há transtornos e desordens. Quando expira a patente de uma droga, seu fabricante se apressa a criar, novamente com a ardorosa colaboração de cientistas e psiquiatras contratados ou subvencionados generosamente, uma nova doença, a que a mesma droga se aplique, mudando apenas de nome. Emoções antes normais em qualquer ser humano podem facilmente revelar-se transtornos ou desordens, conforme o freguês e a moda psiquiátrica corrente. Não se fica mais triste, fica-se deprimido. Não se fica mais ansioso pela antecipação de alguma coisa, fica-se com distúrbios de ansiedade. E para tudo há uma pílula.
Claro, chegaremos, se já não chegamos e ainda não nos demos conta, ao ponto em que todo indivíduo, se confrontado com um hipotético "padrão normal", será portador de vários transtornos, distúrbios e desordens. Qualquer acontecimento que afete suas emoções, seu estado de ânimo ou mesmo seu bem-estar físico deverá ser objeto de controle medicamentoso. Posso até imaginar que talvez já exista, e no futuro poderá prosperar, a figura do PP, o Personal Psychiatrist, não para receitar ou atender no consultório seu cliente milionário, mas para acompanhá-lo ao longo de todo o dia, ministrando-lhe a droga apropriada para a manifestação de qualquer de seus inúmeros distúrbios.
A infância, com a falsa descoberta de um número alarmante de bebês portadores de transtorno bipolar, passou a ser uma doença. Assim como, com toda a certeza, a puberdade, a adolescência, a jovem maturidade, a meia-idade e a velhice. Tudo doença, é claro, bola nisso tudo, bola em toda a existência, você é que pensa que é sadio, é porque não procurou direito sua doença. E, aliás, sugere a prudência que escolhamos logo nossos transtornos, desordens e distúrbios, porque do contrário poderemos estar sujeitos a que escolham por nós. E ninguém escapará, porque o objetivo é englobar toda a Humanidade.
O problema não é a ciência decretar que, de uma forma ou de outra, somos todos malucos. Isso todo mundo às vezes pensa. O problema é quando decidem qual é a nossa maluquice e nos forçam a uma "normalidade" que não queremos e não temos por que aceitar. A chancela da ciência pode ser adulterada. E não é impossível que, em determinadas situações, divergências com o Estado, ou com grupos de poder, acarretem muito mais que censura às artes e à imprensa. Podemos ser forçados a agir "normalmente" e considerados insanos, se discordarmos da normalidade oficial. Na União Soviética, houve tempo em que quem divergia do Estado era carimbado como doido varrido e encafuado num hospício. Tenho medo de não me encaixar na portaria da Anvisa que defina a normalidade e ser obrigado a tomar um Abestalhol por dia.

Democratas de ocasião


Ferreira Gullar

Deixei a poeira assentar para dar meu palpite sobre a polêmica surgida com o impeachment do presidente Fernando Lugo, do Paraguai. Ao saber da notícia, logo previ a reação que teriam os presidentes de alguns países sul-americanos, inclusive o Brasil.
E não deu outra. Hugo Chávez e Cristina Kirchner, como era de se esperar, reagiram de pronto e com a irreflexão que os caracteriza. Logo em seguida, manifestou-se Rafael Correa, do Equador, que, com a arrogância de sempre, rompeu relações com o novo governo paraguaio. Chávez decidiu cortar o fornecimento de petróleo àquele país. E o Brasil? Fiquei na expectativa.
Como observou certa vez García Márquez, o Brasil é um país sensato e, acrescento eu, talvez por nossa ascendência portuguesa, pé no chão. E assim foi que Dilma primeiro mandou seu ministro das Relações Exteriores qualificar o impeachment de "rito sumário". Ou seja, não teria sido dado a Lugo tempo para se defender.
Sucede que o próprio Lugo, presente à sessão do Congresso quando se votou seu impedimento, declarou: "Aceito a decisão do Congresso e estou disposto a responder por meus atos como presidente".
Não disse que o Congresso agira fora da lei nem que tinha sido impedido de se defender. De acordo com as normas constitucionais paraguaias, recorreu à Suprema Corte e ao Tribunal Superior de Justiça, que não atenderam a seus recursos por considerarem constitucional a deposição e legítima a entrega do governo ao vice-presidente.
Só depois que os vizinhos tomaram a inusitada atitude de repelir a decisão do Congresso paraguaio foi que Lugo mudou de opinião e decidiu formar um governo paralelo, este, sim, destituído de qualquer base legal.
Fala-se em golpe, mas só um presidente já politicamente inviável é impedido com o apoio praticamente unânime do Congresso: 76 votos a 1 na Câmara de Deputados e 39 a 5 no Senado. Fora isso, nem os militares nem o povo paraguaios se opuseram. Pelo contrário, o impeachment de Lugo parece fruto de uma concordância nacional. Nessa decisão pesou, sem dúvida, o Partido Liberal, de centro-direita. Mas foi com o apoio deste que ele se elegera presidente da República.
O que houve então? Um complô de que participaram todos os partidos e quase a totalidade dos deputados e senadores? Se fosse isso, o povo paraguaio teria saído às ruas para protestar e denunciá-los. Só uns poucos o fizeram. As Forças Armadas, os intelectuais, os sindicatos protestaram? Ninguém.
O inconformismo com o impeachment de Lugo veio de fora do país: de Hugo Chávez, Cristina Kirchner, Evo Morales, Dilma Rousseff, que se apresentam como defensores da democracia. Serão mesmo?
Vejamos. Hugo Chávez suspendeu o funcionamento de 60 emissoras de rádio e televisão que se opunham a seu governo, criou uma espécie de juventude nazista para atacar seus opositores e fez o Congresso mudar a Constituição para permitir que ele se reeleja indefinidamente. Cristina Kirchner apropriou-se da única empresa que fornece papel à imprensa argentina, de modo que, agora, jornal que a criticar pode parar de circular.
Já Rafael Correa processa um jornal de oposição por dia, exigindo indenizações bilionárias. Democratas como esses há poucos. Dilma mandou seu chanceler a Assunção para pressionar o Congresso paraguaio e evitar o impedimento de Lugo, como o faziam antigamente os norte-americanos conosco.
Como se vê, há um tipo de democrata que só defende a democracia quando lhe convém. Mas, mesmo que Chávez, Cristina, Morales, Correa e Dilma fossem exemplos de líderes democráticos, teriam ainda assim o direito de se sobrepor às instituições paraguaias e à opinião pública daquele país?
Como o impeachment de Lugo consumou-se de acordo com a Constituição paraguaia e pela quase unanimidade dos parlamentares, o único argumento do nosso chanceler foi o de ter sido feito em "rito sumário". No entanto, que chance deram eles ao Paraguai para se defender das sanções que lhe foram impostas? Nenhuma. Essas sanções, além de sumárias, são também ofensivas às instituições do Estado paraguaio e a seu povo.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Quem precisa de crescimento?


Rodrigo Constantino

Confesso que acordei um tanto sombrio hoje. Deve ser o clima, com essas nuvens carregadas. Ou talvez seja a sexta-feira 13. Sei lá. O que sei é que minha paciência, normalmente elevada, chegou ao limite e explodiu. Portanto,data venia, mas não posso ficar calado diante das novas afirmações de nossa ilustre “presidenta”.

Dilma disse: "Uma grande nação deve ser medida por aquilo que faz para as suas crianças e adolescentes, não é o PIB". Não é lindo isso? Não obstante o mistério de o que exatamente este governo tem feito de bom para nossas crianças e adolescentes, resta descobrir como será o futuro deles se a economia ficar estagnada.

Mas eis o que realmente revira meu estômago: não era este o governo que ainda há pouco se vangloriava porque nosso PIB ultrapassara o do Reino Unido? O governo dança conforme a música. A presidente cada vez mais se parece com seu antecessor, o Zelig, o camaleão humano que sabe se adaptar para qualquer público e ocasião. Haja cara-de-pau!

O Secretário de Política Econômica do Ministério das Finanças, Márcio Holland, pede paciência. Como eu disse no começo, a minha se esgotou. Para o economista, existe crescimento acima de 7%, mas sem democracia, sem estabilidade e com má distribuição de renda. Ora, ora, temos vários casos com crescimento bem maior que o nosso, com democracia e maior estabilidade, como o Chile ou países asiáticos.

Além disso, resta descobrir onde estão a grande estabilidade e a boa distribuição de renda no Brasil. À democracia eu concedo o benefício da dúvida, mas quando se trata do PT é sempre bom estar alerta. Ela tem resistido, a duras penas, a despeito do PT, e não por causa dele.

Acordei sombrio, dizia eu. Pensei na excelente coleção dos “reis malditos”, de Maurice Druon, uma vez que a superstição com a sexta-feira 13 pode ter ligação com o extermínio dos Cavaleiros Templários a mando de Felipe O Belo, no começo do século 14.

No livro, o autor coloca no Grão-Mestre dos Templários, Jacques DeMolay, as últimas palavras que amaldiçoaram seus algozes: “Eu convoco vocês ao Tribunal dos Céus antes do término deste ano!” Não chego a tanto. Mas convoco este governo ao tribunal dos dados econômicos objetivos até o final do ano!