João Ubaldo Ribeiro
De uns tempos para cá, é
cada vez mais forte a tendência a não se ver o indivíduo como responsável pelos
próprios atos. No terreno da ciência social esquerdoide, o sujeito é assaltante
porque lhe faltaram oportunidades, não teve educação, vive numa sociedade
consumista, foi vítima de bullying e mais quantos indicadores se concebam, em
pesquisas cujos resultados são definidos pela própria formulação e, muitas
vezes, não passam de manipulações pseudoestatísticas, destituídas de base
sólida. Enxergam-se relações de causa e efeito inexistentes, que resistem até
mesmo à óbvia verdade de que a ampla maioria dos que enfrentaram e enfrentam
essas situações não é de delinquentes.
No terreno da psicanálise de
boteco, o sujeito surra mulher e filhos porque foi também surrado,
principalmente pela mãe. Ou - pois a psicanálise de boteco tem o condão de
adaptar suas explicações e a causa que, num exemplo, surte determinado efeito
em outro surte efeito contrário - porque não foi surrado e nem sequer advertido
e, assim negligenciado pela mãe, nutre amor e ódio pela figura materna, na qual
desconta seus recalques baixando a porrada na santa mãe de seus filhos, os
quais também apanham porque dividem as atenções da dita figura materna. Ou
qualquer outra especulação asnática, das muitas que volta e meia ainda ouvimos.
Agora, por meio da entusiástica
colaboração de cientistas, psiquiatras e, principalmente, fabricantes de drogas
psicoativas, vamos ingressar definitivamente na era em que qualquer
comportamento ou qualquer emoção serão vistos como uma doença mental, no
sentido mais lato do termo. Aliás, pouco se tem usado a expressão "doença
mental". O chique agora, que repetimos como papagaios bem ensinados, é
"transtorno", "desordem" ou "distúrbio". Sabemos
que certamente a maioria dos psiquiatros e das psiquiatras, bem como a maioria
dos cientistos e cientistas, embora talvez não a maioria dos fabricantes e
fabricantas de drogas, não é constituída de enganadores venais e
inescrupulosos, que tomam dinheiro dos fabricantes para promover a vendagem
bilionária de remédios. Mas muitos e muitas são (está certo, vou parar com este
negócio de flexionar os gêneros de tudo, sei que é chato; mas é só porque quero
mostrar como certas coisas enfeiam e aleijam nossa já tão perseguida língua
portuguesa) e a bandidagem deles combinada vai de vento em popa.
O número de transtornos e
desordens aumenta exponencialmente e já se observou que, anunciado um novo mal,
de que antes não havia relato, logo surgem novos "pacientes", gente
que agora padece de síndromes também antes nunca descritas. E os males do espírito,
digamos, muitas vezes não geram sintomas físicos, ou, se geram, são de difícil
definição etiológica, de forma que o diagnóstico vira conceitual e subjetivo:
eu acho que você está deprimido porque acho que seu quadro configura o que eu
acho que é depressão.
Não há mais preguiça, há
transtornos ou desordens de atenção, de motivação, de interação social, de tudo
o que se possa imaginar. Não há mais agressividade, rudeza no trato, timidez,
temperamento calado, nada disso, só há transtornos e desordens. Quando expira a
patente de uma droga, seu fabricante se apressa a criar, novamente com a
ardorosa colaboração de cientistas e psiquiatras contratados ou subvencionados
generosamente, uma nova doença, a que a mesma droga se aplique, mudando apenas
de nome. Emoções antes normais em qualquer ser humano podem facilmente
revelar-se transtornos ou desordens, conforme o freguês e a moda psiquiátrica
corrente. Não se fica mais triste, fica-se deprimido. Não se fica mais ansioso
pela antecipação de alguma coisa, fica-se com distúrbios de ansiedade. E para
tudo há uma pílula.
Claro, chegaremos, se já não
chegamos e ainda não nos demos conta, ao ponto em que todo indivíduo, se
confrontado com um hipotético "padrão normal", será portador de
vários transtornos, distúrbios e desordens. Qualquer acontecimento que afete
suas emoções, seu estado de ânimo ou mesmo seu bem-estar físico deverá ser
objeto de controle medicamentoso. Posso até imaginar que talvez já exista, e no
futuro poderá prosperar, a figura do PP, o Personal Psychiatrist, não para
receitar ou atender no consultório seu cliente milionário, mas para
acompanhá-lo ao longo de todo o dia, ministrando-lhe a droga apropriada para a
manifestação de qualquer de seus inúmeros distúrbios.
A infância, com a falsa
descoberta de um número alarmante de bebês portadores de transtorno bipolar,
passou a ser uma doença. Assim como, com toda a certeza, a puberdade, a
adolescência, a jovem maturidade, a meia-idade e a velhice. Tudo doença, é
claro, bola nisso tudo, bola em toda a existência, você é que pensa que é
sadio, é porque não procurou direito sua doença. E, aliás, sugere a prudência
que escolhamos logo nossos transtornos, desordens e distúrbios, porque do
contrário poderemos estar sujeitos a que escolham por nós. E ninguém escapará,
porque o objetivo é englobar toda a Humanidade.
O problema não é a ciência
decretar que, de uma forma ou de outra, somos todos malucos. Isso todo mundo às
vezes pensa. O problema é quando decidem qual é a nossa maluquice e nos forçam
a uma "normalidade" que não queremos e não temos por que aceitar. A
chancela da ciência pode ser adulterada. E não é impossível que, em
determinadas situações, divergências com o Estado, ou com grupos de poder,
acarretem muito mais que censura às artes e à imprensa. Podemos ser forçados a
agir "normalmente" e considerados insanos, se discordarmos da
normalidade oficial. Na União Soviética, houve tempo em que quem divergia do
Estado era carimbado como doido varrido e encafuado num hospício. Tenho medo de
não me encaixar na portaria da Anvisa que defina a normalidade e ser obrigado a
tomar um Abestalhol por dia.
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