quinta-feira, 15 de março de 2012

Desigualdade cotidiana

      Um sujeito faz o seu pedido e vai esperá-lo em uma das mesas da praça de alimentação do shopping. Passados alguns minutos – muitos, na verdade, já que o letreiro do local dizia “express” –, ele vai pegar sua refeição. Terminado o almoço, levanta-se da cadeira e vai dar uma volta para ver as promoções e depois vai embora. É uma cena comum nos shoppings. O que teria demais nessa breve narrativa? Muita coisa, na verdade. A principal delas é o fato de se levantar da mesa e ir embora, deixando a bandeja com o prato e o resto na mesa, sem levá-la até o lugar adequado. O que isso significa? Não é normal ou apropriado? Pode até ser, mas denota um dos traços da mentalidade coletiva brasileira. Em poucas palavras, refiro-me à desigualdade formal. Não a social, das diferentes classes econômicas ou da luta de classes para alguns. Falo especificamente da desigualdade jurídica ou formal, isto é, a noção de que uns são mais iguais que outros, o oposto do que dispõe o artigo 5° da Constituição Brasileira.
         Longe de fazer uma crítica individual àqueles que se identificaram com a situação relatada – até porque quem escreve este texto já fez e reproduz tal atitude –, a ideia aqui é pensar os motivos que nos levam a naturalizar esta atitude, como se fosse algo absolutamente inquestionável. A questão a ser colocada é: embora existam lugares para que os próprios consumidores coloquem as bandejas e despejem os restos, por que isso não é feito ou feito por poucas pessoas? Preguiça? Comodismo? Até pode ser, mas existe um aspecto de fundo que gostaria de ressaltar. Trata-se, como dito no parágrafo anterior, da desigualdade formal que vivemos diariamente. É como se, inconscientemente, disséssemos para nós mesmos que, por sermos consumidores que pagam pela refeição, não tivéssemos que nos sujeitar à (vil) situação de ter que levar a própria bandeja até o lugar adequado. Dá-se, então, uma cisão: de um lado, os consumidores que pagam pelo almoço ou jantar; de outro, os empregados da limpeza que devem, servilmente, recolher os restos deixados pelos primeiros. Por que será que é assim? Por que nos parece tão natural?
         Recorrer à história brasileira pode ajudar a pensar as questões, nada mais que especulações, na verdade. Se pensarmos no período colonial brasileiro, na escravidão que perdurou por séculos, na cultura da malandragem, nas relações escusas que pessoas de poder estabelecem com agentes do Estado, o ponto em comum de tudo isso é a ideia de que nem todos são iguais, já que alguns acreditam ter mais direitos que os outros. Determinado imperador e seus séquitos têm mais prerrogativas que o resto da população; o dono de escravo faz o que bem entender com o escravo, logo tem mais direitos; o malandro, ao invés de atuar com lisura, busca o ardil para conseguir algo que moralmente não conseguiria. Ora, todas essas situações, feitas as devidas adaptações, representam a desigualdade jurídica que impera em nossas relações sociais. Não se trata de ser algo ilegal; deixar o prato de comida na mesa para que outro venha recolhê-lo não é crime, porém pode denotar esse traço cultural brasileiro: a incapacidade de ser ver como mais um, como alguém que tem os mesmos direitos e deveres daqueles que se encontram em uma posição inferior, ainda que momentaneamente. E isso se reflete em outros âmbitos da cotidianidade, como no trânsito, na escola e em outros espaços públicos.
         Por não ter o peso do passado absolutista e nem qualquer tipo de ranço de períodos imperiais, a cultura norte-americana deu vários exemplos de respeito à igualdade jurídica. Seria risível acreditar que não existam situações iguais ao que acontece por aqui, mas lá é possível encontrar inúmeros mecanismos e sinais de respeito à igualdade. Historicamente, Alexis de Tocqueville, político francês, em um estudo seminal sobre os norte-americanos, revela o apego daquele povo pela ideia de igualdade. Demonstra ainda o prazer pela praticidade em contraposição às formalidades que regiam as nações europeias do século XIX. Isso significa que o norte-americano, vendo-se como igual aos outros, em tese não se importaria de retirar sua própria bandeja após fazer a refeição, já que não haveria necessidade de que alguém fizesse isso por ele. Sem buscar estabelecer comparações, pois seriam precipitadas e injustas, pensar a (des)igualdade jurídica, especialmente nas relações sociais mais básicas, é um passo importante para se pensar a igualdade formal.

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